Ontem, vi um corpo. Ele estava na rua, braço jogado para o lado, como nesses filmes policiais que a gente vê. Mas esse era de verdade, não era ator, nem sangue de mentira. Um lençol, já ensanguentado, cobria seu rosto e parte do que dava. Luzes vermelhas iluminavam os rostos curiosos que se aglomeravam para ver o acidente. Vi as sirenes ao longe e, imaginando ser uma blitz, me assegurei que todos estivessem de cinto. Mas ao chegar perto, percebi que havia algo errado, não era simplesmente uma blitz. Olhei não mais que cinco segundos e lá estava o corpo estirado no chão. Aquilo me invadiu por dentro.
Não pude pensar em mais nada durante o resto do caminho para a casa. Martelava em minha mente a efemeridade da vida e como em um segundo aquele rapaz podia ter deixado de ser filho, pai, namorado, marido, empregado ou patrão para se tornar simplesmente um corpo sem vida. Aquilo era extremamente perturbador.
Antes de dormir, enquanto fazia minha leitura da Bíblia, saltou-me os olhos coincidentemente (para quem acredita em coincidências): “Que é a vossa vida? Sois, apenas, como neblina que aparece por instante e logo se dissipa” (Tg 4:14). Aquilo foi tão forte, que era impossível ignorar. Afinal, não é isso mesmo? Buscamos com tanta intensidade conquistas terrenas, queremos sempre mais dinheiro, status, um corpo invejável, o melhor currículo e deixamos de lado o que realmente importa, o que é eterno. A vida espiritual, uma relação sincera (e não obrigatória-dominical) com Deus tem de ser prioridade. Estamos cuidando tanto do corpo e da mente, e deixando a saúde de nossa alma de lado. Apesar de polêmico, esse é um assunto que merece reflexão. Não podemos simplesmente ignorá-lo, da mesma forma que não é possível ignorar um corpo, sem vida, estirado no chão.
domingo, 24 de outubro de 2010
O Corpo
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
O solitário da noite
Ele se sente um boêmio nato. Aproveita qualquer brecha e sai pela madrugada a vagabundiar pelas ruas escuras da cidade. Mexe com as fêmeas distraídas e faz tentativas frustradas de uma noite de amor. Elas o desprezam. Seus olhos cor de mel, com certo ar carente, não comovem mais as garotas como antes. Para essa nova geração, amor é uma questão de cheiro e ele, de longe, aponta para um aroma indescritível: o de um perdedor.
Ele não tem nada a oferecer. Nem virilidade, nem bens materiais, nem compromisso. Ele é um solitário da noite, sem amigos, sem destino. Nunca se sabe para onde vai, ele simplesmente some na neblina da noite em busca de liberdade. A noite é seu momento de fuga. Na rua comprida e completamente vazia não há portões, não há o chamado de ninguém, é onde reina. Sente-se tão poderoso e imponente quanto um lobo uivando para sua lua cheia.
Ele vaga pelas sombras sem incomodar ninguém, anda por horas e quando se cansa, volta. Ele entra então em casa, pé ante pé, e vai atrás de sua cama quente e da comida no prato. Dorme até tarde, busca chamego, e à noite Tobi vira Rex e encara o personagem “vira-latas mau caráter” e segue rumo a sua vida de boêmio da noite.
quarta-feira, 29 de setembro de 2010
Estrela Cadente *
Era como um vício. As estrelas o atraiam, a lua cheia o prendia em um inebriante sorriso que, embora não fosse muitas vezes visto externamente, estava ali representado no brilho dos olhos negros. As lentes de vidro refletiam as luzes da cidade. Apartamentos acesos indicavam que Maringá continuava acordada, mesmo no pico da madrugada. Ele, assim como um bocado de gente, buscava uma forma de fugir da insônia. Algumas janelas piscavam luzes azuis, indicando que a televisão era a melhor companhia na noite que não queria amanhecer. Mas o refúgio dele estava na rua, sentia-se bem naquele ambiente urbano, emparedado por prédios na larga avenida iluminada. A brisa noturna que lhe bagunçava os cabelos fazia-lhe sentir livre. No entanto, alguma coisa o incomodava.
Dirigiu até seu lugar favorito que dava uma visão privilegiada da cidade. Lá, totalmente sozinho, se perguntava o porquê daquele aperto no peito. Já fazia pelo menos três dias que não dormia uma noite inteira, só pensando, pensando e pensando. Sua cabeça parecia uma máquina que não parava de rodar um minuto só. Por isso gostava tanto de olhar para o céu, era como se conseguisse esvaziar sua mente na imensidão negra da noite.
Às vezes se desligava do mundo terrestre por longos minutos, só formulando teorias sobre os astros do céu. Desde criança, sempre foi assim. Durante os eclipses, imaginava o sol e a lua em um beijo apaixonado, gostava de inventar nome para as estrelas e sempre sonhou ver uma estrela cadente, só para fazer um pedido. Mas quando pensava no que poderia pedir para a tal estrela apressada sentia tanta ansiedade, mas tanta ansiedade que nunca chegou a uma conclusão (e sempre acreditou intimamente que fosse por isso que nunca chegou a ver uma estrela cadente assim de pertinho).
Então, no meio daquela insônia toda, pensou como seria uma noite perfeita. Fechou os olhos. A primeira certeza que teve é de que a lua estaria presente. Haveria uma garota também. Não qualquer garota, que fique bem claro, mas aquela que despertasse dele os sorrisos mais sinceros, que pudesse também fazê-lo chorar, uma garota que penetrasse a muralha de proteção que ele criou para si e o impulsionasse a fazer algo louco.
Ela, juntamente com a lua, seria o pretexto perfeito para ele fugir. Sim, era isso que ele queria: queria fugir da rotina do presente e do medo do que ainda está por vir; queria deixar para trás sua vida e começar uma nova, queria mais, sentia que tudo o que tinha vivido até então era muito pouco e que ainda havia muito para ser vivido. Queria viajar sem rumo, conhecer estranhos e até passar por apuros (por que não?), só para sentir-se vivo. Sim, era isso que ele mais queria. Neste momento, ele abriu os olhos e sorriu. Então, pela primeira vez, ele viu cruzar no céu uma estrela cadente.
*Conto publicado no e-book Contos Maringaenses, que pode ser baixado gratuitamente aqui
domingo, 26 de setembro de 2010
Quando eu crescer
Quando eu crescer, quero ter um jardim desses, florido, com um banquinho em baixo de uma árvore para ler meus contos preferidos, sozinho, em paz.
Quando eu crescer, não quero saber da guerra pela TV e ignorar as mortes diárias dos inocentes nas favelas do meu País.
Não quero deixar para fora da janela um dia de sol como o de hoje. Olha, olha ali como a água brilha com o reflexo do sol. Quando eu crescer, quero ser marinheiro, só para poder sentir o sol, o vento, a chuva, enfrentar as tempestades, sentir a vida que hoje eu vejo por uma parede de vidro.
Quando eu crescer, vou amar alguém. Ela será minha princesa e eu a protegerei de todo o mal. Lhe trarei flores do jardim todos os dias, recitarei um verso dos meus poemas favoritos e afagarei seus cabelos até dormir.
Ah um dia, quando eu crescer...
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
O desempregado e o trote que saiu pela culatra
Já fazia duas semanas que ele folheava os classificados do jornal. Às vezes circulava algum anúncio, mas nunca conseguia nada na área de comunicação em que era formado.
- É o seguinte, eu tô com o Rãmester. Ele tá bem, mas...
A menina do outro lado da linha nem esperou ele acabar de falar e já foi gritando:
- Manhê! Manhê! O moço achou o ramster!
- Sério filha? Nossa, mas como?
- Viu, e você ainda não queria colocar o anúncio no jornal!
- Claro filha, como é que eu ia adivinhar que....
Impaciente com a conversa, ele interrompeu:
- É o seguinte, eu quero que você deposite R$ 500 na minha conta, senão...
- Não moço, mas no anúncio não falava nada de recompensa, não!
A mãe foi logo se intrometendo e falando ao fundo
- O quê? Ele tá querendo recompensa, é?
- É mãe, ele quer que a gente deposite R$ 500 na conta dele.
- Senão eu mato ele – gritou confiante o sequestrador.
- Senão o moço mata ele, manhêê!!
- Ahahahahaha, esse cara tá maluco? Olha, minha filha, o ramster já tinha vivido até demais, né? Se não morrer agora, ele vai morrer em menos de dois anos mesmo...
A menina começou a chorar desesperadamente e o “aspirante a sequestrador” não sabia o que fazer, ficou mudo, não estava entendendo nada. Perguntava-se como aquela mulher poderia ser tão fria, nem ligando para a vida do velho homem.
- Não, mãããeeee... eu quero o ramster, ele é velhinho mas eu amo ele, ele é tudo pra mim!!! O que eu vou fazer da minha vida sem ele?
- Filha, R$ 500 é muito dinheiro. Ele não vale tudo isso.
A filha, desesperada, largou o telefone e saiu esgoelando pela casa:
- Eu te odeiooo!!
A mãe, calmamente, pegou o telefone:
- Oi, meu senhor, olha, muito obrigada pela boa vontade, viu? Mas pode ficar com ele para você, não tem problema não, tá? Tenha um bom dia.
Tu, tu, tu, tu.
Ele estava boquiaberto. Não conseguia entender toda aquela confusão, mas, persistente, resolveu tentar de novo e dessa vez se preocupando com o nome da próxima vítima. O telefone chamou por três vezes até que a voz chorosa de uma idosa atendeu.
- Pronto.
A musiquinha não tinha tocado. No choque da ligação anterior ele esqueceu de ligar a cobrar, mas pensou: “ah, essa véia eu enrolo fácil”. Foi logo forçando a voz e puxando o erre para parecer que era da região litorânea do Sudeste.
- Excuta aqui coroa, tô com o Aderrrbal aqui na minha frente e se tu não depositar em uma hora o dinheiro na minha conta, a coisa vai ficarrr feia pro lado dele.
- Nossa, que rápido! Como é o nome do senhor mesmo?
- Num interessa meu nome não, vai logo depositando a grana.
- Ah, entendo, privacidade profissional, né? Mas eu preciso de uma garantia de que ele tá aí, pede pra ele me mandar um recado. Pergunta se ele tá na luz.
- Não minha senhora, ele tá aqui na minha frente, já disse! Ele falou que é pra tu depositar o dinheiro, senão ele vai pra um lugarrrr muito excuro, bem abaixo dos nossos péxxx.
- Cruzes! E eu que achava que o dinheiro só valia nessa dimensão! Pergunta se ele encontrou o tio Toninho lá, pergunta!
- Não vou perrrguntar nada não, vai depositá o dinheiro ou eu vou terrr que dar um fim nas coisax do meu jeito?
- Calma, eu vou pegar uma caneta pra anotar. Não termina com a sessão ainda não...
Enquanto esperava na linha, tocou um celular e ele ficou ouvindo a velha falar:
- Pronto. Como? Não, isso é impossível. Como assim ele não morreu? Confundiram os nomes no laudo médico? Mas eu tô falando com aquele pai de santo que a Dorinha me indicou. É...aquele lá da capital que fala com os mortos. Nossa, por isso que ele disse que não viu luz nenhuma, ele não tinha chegado lá, né? Só tava na metade do caminho. Gente do céu... peraí que o pai de santo tá na linha, depois te ligo!
Pai de santo?? Ele não podia acreditar! Era muito azar para um dia só. Resolveu desligar o telefone antes que a velha voltasse e achou melhor ela pensar que era mesmo um pai de santo e que o tal defunto tivesse voltado à vida. Já sem esperanças, jogou o celular na cama com raiva. Depois de alguns minutos pegou os classificados do jornal de novo. Analisou, analisou e circulou a única oferta de emprego que dava para ele atuar. Marcou entrevista e uma semana depois estava contratado. Sem muitas oportunidades, e com um rombo na conta do celular, ele trabalha agora num ramo parecido com o que ele tentou antes. Só que desta vez, em vez dele ligar para as pessoas para tentar ganhar dinheiro, ele ganha dinheiro para ligar para as pessoas:
- Boa tarde. Eu poderia estar falando com o responsável pela linha telefônica?
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
Relacionamentos modernos
Hoje a frase de uma amiga me fez pensar na superficialidade das coisas. Houve um tempo que as relações eram mais verdadeiras, mais profundas. A gente gastava mais tempo com as pessoas, cultivando amizades, sim, porque se dedicar a alguém exige tempo e dá trabalho, muito trabalho. Tanto, que normalmente a gente resolve deixar pra depois. Primeiro, estuda, passa no vestibular, se forma, tem uma profissão, trabalha muito, bajula o chefe para ser promovido, daí casa para não ficar sozinho e de repente nascem os filhos, os netos. A gente se aposenta. Então essa é a melhor idade, hora de viajar, aproveitar e curtir a vida. E assim vai... e assim vamos empurrando com a barriga semi-relações.
Lembro, por exemplo, que os almoços em família na mesa da cozinha, eram mais frequentes. Além disso, havia o sagrado café das seis, acompanhado do pão francês com manteiga e café preto. Hoje, as refeições são mais solitárias, mas estranhamente mais barulhentas. Rádio, televisão, telefone, cachorros. Tudo parece “barulhar” ao mesmo tempo. Conversar é difícil. Palavras soltas compõem os espaços curtos de silêncio entre um eletrodoméstico e outro, mas parece que ninguém se ouve. As pessoas só querem falar e serem ouvidas, mas ninguém ouve.
- Quinta que vem eu tenho um dia de folga. To pensando em fazer uma viagem curta, o que você acha?
- Ah, legal. Então, sabe aquela bota marrom que eu vi no shoopping, ta na promoção. A gente podia ir lá no final de semana, né?
- É, pode ser. Mas então... acho que vou visitar a Mariana, faz tempo que não vejo ela.
- Posso agendar sábado às 14h então para a gente ir no shopping?
- Ah, legal, vamos no shopping sim que eu aproveito e levo uma lembrancinha pra mãe da Mariana.
- Quem é Mariana?
E de repente, você se dá conta que a conversa-monólogo não vai a lugar nenhum. E assim é também nas demais relações. Percebo que a cada aniversário o telefone fica mais quieto. Telefonemas foram substituídos por scraps, twitts, SMS, e mais um bocado de siglas e nomes estrangeiros que devem existir e eu já nem sei. Mas nada substitui o antigo “cara a cara” (lembra dele, quando você ia até a casa do seu amigo, mesmo quando não tinha festa, só para lhe dar parabéns?) ou pelo menos o telefone, em que dá para saber, só de ouvir a voz da outra pessoa, se ela está bem, feliz, gripada ou se acabou de acordar.
Mas não pensem que sou um exemplo de pessoa, uma amiga exemplar. Também me entreguei às moderno-facilidades e ando mandando muitos caracteres de felicitações por aí. Minha voz mesmo, meus amigos (ou colegas?) acho que só devem conhecer se tiverem microfone no MSN e me chamarem para um bate-papo virtual.
Isso tudo me incomoda muito. Como é que a gente se acomoda tanto, como é que o pra sempre se transforma em nunca mais, o especial em normal e os amigos em conhecidos?
Será que a gente tinha mais tempo para tudo isso? Essa seria uma boa desculpa e eu poderia terminar meu texto por aqui, seria algo confortável de dizer. Mas a gente sabe, bem lá no fundo, que não é isso, tempo a gente sempre arruma quando quer. Por mais lotado que esteja o dia, quando a pessoa é realmente importante, quando a gente realmente quer, a gente dá um jeito. A verdade é que, na maioria das vezes, deixamos de fazer as coisas por puro esquecimento, por frieza, ou por não nos importarmos. Estamos presos naquele diálogo na mesa da cozinha, onde todo mundo quer ser ouvido, todo mundo quer falar. Mas quem quer ouvir? A modernidade criou ferramentas para facilitar a comunicação, e o que nós mais desaprendemos nos últimos tempos foi justamente nos comunicar.
E sabe, se alguém aí quiser bater um papo desses gostosos, sem hora para acabar, me liga, a gente combina, porque depois de tudo isso, tudo que eu quero é me re-relacionar.
domingo, 1 de agosto de 2010
A mensagem
Era um desses dias indecisos – em que o céu não se decide entre o azul anil ou o esbranquiçado das nuvens leves e que não consigo optar entre nhoque bolonhesa ou macarrão ao molho branco – quando você resolveu reaparecer na minha vida. Enquanto a atendente bate o pé ansiosamente com a caneta na mão esperando meu pedido, o toquezinho insuportável e inconfundível do celular emprestado que uso até o meu sair do conserto anunciava que de duas uma: ou minha operadora mandava uma super e interessante mensagem com propaganda de algum serviço inútil ou alguém, de fato, enviava uma mensagem que merecia minha atenção. A atendente percebendo que dali não sairia uma decisão muito veloz, partiu para outra mesa em busca de um pedido que pudesse anotar. Resolvi então dar uma espiada na telinha pequena e cheia de arranhões do aparelho portátil. Ergui as sobrancelhas e arregalei os olhos. Não poderia ser. Mas eu só conhecia uma pessoa com aquele código DDD, comecei a ler a mensagem e rir foi inevitável.
Como poderia? Como um serzinho pode ter tamanha cara de pau, tamanha astúcia de me escrever aquelas palavras, ignorando totalmente o contexto que há por trás delas? Será mesmo que ele achou que simplesmente ressurgir com uma bela mensagem de texto ao estilo “você sumiu, estou com saudades de você” faria meus batimentos cardíacos se alterarem e eu esquecer todas as outras palavras rudes ditas pessoalmente naquelas tardes de outono? Olha, uma coisa eu sei bem, para algumas pessoas, palavras são apenas junções de letras, mas para mim podem valer mais do que dinheiro ou doer mais do que uma surra. Na verdade, a questão não são as palavras em si, elas por si só são vazias e não valem de nada, mas quando elas fazem sentido, ah, meu caro, aí o negócio pega. E é exatamente por isso que eu tive de reler três vezes antes de acreditar que aquela mensagem era realmente dele.
Certamente, para ele foram apenas algumas letrinhas digitadas em um momento livre, mas para mim foi a prova cabal de como os homens são inocentes ao pensar que com o tempo tudo se resolve e que a mente das mulheres apaga certas coisas. Pois bem, vou lhe dizer uma coisa. As mulheres nunca esquecem. Nunca, gravaram bem isso? E se elas se fazem de esquecidas é por amor, para tornar suportável a convivência delas com os homens que as fizeram sofrer. Mas não se engane, isso virá à tona assim que o amor se transformar em um sentimento não muito agradável. Neste caso, as formas de reação são as mais variadas, a vingança é a mais comum, mas no meu caso, eu optei para a que julgo a mais cruel: a arte de ignorar. Não há nada mais sublime do que isso. Você não o ama, nem o odeia, você simplesmente o ignora, ele não incomoda você e isso é de desesperar qualquer um. Ninguém gosta de ser um fantasma. É o velho “falem bem, falem mal, mas falem de mim”. Pois eu não falo, evito pensar e, é claro, não respondo à mensagens, principalmente desse tipo. Contudo, apesar de apreciar a ironia, confesso que o gostinho da vingança sempre me vêm à cabeça, como se me viesse uma sede de sangue, é difícil explicar. Mas eu compenso isso de outras formas.
Depois de minha risada irônica frente à telinha minúscula do celular e minha satisfação silenciosa de quem sente-se vitoriosa após ganhar uma batalha, me senti completamente decidida. Chamei a garçonete com a voz firme e sem titubear e pedi um nhoque à bolonhesa. “Ah, mas capricha no molho vermelho, por favor.”
quarta-feira, 28 de julho de 2010
A busca
Parou, olhou para o semáforo vermelho e foi em um momento de fuga, em que se ignora desde o carro barulhento ao lado, até o malabarista desajeitado em busca de uns trocados, que Inácio pensou: “O que é que eu estou fazendo aqui?”. Não era um lapso de memória, nem a percepção de estar perdido espacialmente naquela avenida larga de Campo Grande. Era, na verdade, um momento de lucidez. Uma certeza de estar completamente perdido entre as contradições de si mesmo.
A buzina do homem gordo e apressado do carro de trás o despertou do sonho de olhos abertos. Engatou a primeira marcha e seguiu em frente, já não tão preocupado com o caminho, nem com a chuva que começava a cair. A pergunta martelava em sua cabeça. Ainda faltava uma considerável quantidade de quilômetros até seu destino e algo lhe dizia que seria uma viagem mais longa do que o previsto. Os borrões verdes das árvores que passavam pela janela fizeram Inácio mergulhar fundo em seus pensamentos. Lembrou-se de sua mulher, na verdade agora ex, que ele preferia, para evitar constrangimentos, apenas chamar de Sofia.
Inácio e Sofia eram um daqueles casais que qualquer um podia perceber como se amavam loucamente. Bastava uma troca de olhar entre eles e pronto, estava denunciado ali uma declaração silenciosa, mas totalmente nítida de que foram feitos um para o outro. Eles se completavam, faziam planos para o resto da vida. Casaram-se e foram muito felizes como era de se prever. Mas então por que acabou, o que deu errado? Seria traição? Não. Não houve nenhum episódio específico, nenhum fato que tenha marcado o dia em que Sofia olhou para Inácio e ambos não sorriram por dentro. O que acontece, e que a novela e as revistas não mostram, é que a grande vilã dos casais não é a secretária mais nova ou o personal trainner malhado, mas a rotina.
Depois de alguns anos, já não sentiam prazer no ritual programado do café da manhã de torradas, café preto, beijo molhado, mas sem paixão, na hora da saída. Mesmo assim, seguiam o mesmo procedimento dia a dia. O tempo em casa foi diminuindo e no trabalho, aumentando. Foi quando apareceu a oportunidade na vida de Inácio: uma promoção no trabalho, mas para morar em Mato Grosso do Sul, a mais de 1.000 Km de sua casa. Claro que Sofia entenderia a mudança, afinal com o novo salário ela nem precisaria trabalhar e Sofia, de fato entendeu. Entendeu, mas não concordou. Entre discussões, choros e novas discussões, ele teve de optar entre alguém que não lhe “compreendia” e a oportunidade de uma carreira brilhante.
Mas agora, passados 20 anos, sem a euforia de querer ganhar o mundo e sem ninguém para lhe esquentar os pés nos raros, porém incômodos, dias de frio, perguntava-se, pela primeira vez, se havia feito a coisa certa. Passava um filme em sua mente de como teria sido se tivesse ficado, será que teria filhos? Será que ainda estaria com Sofia? E como ela estará hoje, será que sente sua falta, será que tem outro alguém? Com todas essas dúvidas, a lágrima foi inevitável. Escorria junto com a chuva que embaçada o vidro (ou seriam seus olhos?). Então, de súbito, tomou uma decisão. A mais importante da sua vida. Ia atrás de sua eterna mulher, ia correr atrás da sua felicidade. Ensaiou por 20 Km o que diria a ela e como poderia convencê-la de que ele ainda a amava. Se ela não acreditasse, planejava até um rapto, igual a esses que se vê em filme de época. E assim, foi durante toda a viagem e prometeu que assim que terminasse o trabalho em Brasília, viajaria mais 2.000 km só para vê-la. Largaria o emprego e seria feliz.
Mas quando Inácio chegou a Brasília e atendeu seus clientes, sentiu-se completamente realizado. Obviamente, não fez nada do que havia planejado em relação à Sofia. Voltou para casa, cantarolando, enquanto planejava as ações de marketing que apresentaria a seu chefe. Ele estava feliz. Percebeu que não precisava ir atrás de seu amor, ele já o havia encontrado há 20 anos.
terça-feira, 27 de julho de 2010
Eu@mo.você
Quando ela disse que o amava, os olhos dele não piscaram por longos segundos. Ele ficou imóvel, sem dizer uma palavra, sem entender o porquê ela dissera aquilo daquela forma tão abrupta e tão... tão despreparada, pelo menos para ele. Era como se ele dissesse com os olhos que declarar-se para alguém exige pré-requisitos, como um tempo, um local e uma forma específica, uma norma da Abnt do amor.
Ele estava muito acostumado a lidar com números, computadores e todo e qualquer tipo de equipamento eletrônico que surgisse com a proposta de facilitar seu trabalho, evitando o contato humano. Expressar sentimentos, no entanto, nunca foi seu forte, receber expressões de amor também não era lá algo muito comum em sua vida.
Ao longo de seus 32 anos, apenas algumas namoradas, todas tão caladas e frias quanto ele. O último relacionamento, por exemplo, durou quase dois anos e começou e terminou via mensagens instantâneas, mesmo os dois estando separados por apenas três quarteirões.
Agora com ela era diferente, pra falar a verdade, ele nem sabe dizer ao certo como começou a se relacionar com uma pessoa tão diferente e que, de certa forma, o fazia diferente também. Mas apesar de todas as loucuras propostas por ela ao longo desses sete meses, como tomar sorvete sob um frio de 8°C e sair sem rumo pela estrada em uma sexta-feira, só para ter o prazer de chegar sábado em um lugar qualquer, dizer que o amava parecia a aventura mais perigosa que ela propora até então. Até porque, as outras exigiam que ele apenas se entregasse às sandices temporárias dela, mas logo estava ele de volta ao seu solitário e silencioso mundo no apartamento 1203, na rua João Beltrão. No entanto, aquela afirmação precipitada e louca exigia alguma postura dele, era necessário dizer alguma coisa. Ficar imóvel não resolveria seu problema.
Mas o que ele diria? Afinal assumir que também a amava implicava em uma série de obrigações que ele não sabia ao certo se estava disposto ao assumir. Por outro lado, se ele não a ama, o que sente então? E durante aqueles oito segundos depois da afirmação dela, tudo isso se passou pela cabeça dele. Ele passou a mão no cavanhaque por fazer e desceu até o pescoço, ficou vermelho e olhava ininterruptamente para o computador.
Então, ela o chamou pelo nome, ele olhou e finalmente enxergou. Sim, porque há uma grande diferença entre ver e enxergar, nós vemos muitas coisas todos os dias, mas só enxergamos as coisas que nos permitimos enxergar. E naquele momento, ao ouvi-la chamar seu nome, sem explicação alguma, ele enxergou sua vida bem ali à sua frente, de vestido branco e olhos atentos, de quem vive observando com curiosidade tudo a sua volta, de quem se entrega sem pedir nada em troca, de quem ama porque ama e só, sem pretensões, sem cobranças. Então ele percebeu que passou tanto tempo olhando só para si e para o mundinho em que estava inserido que não pode ver o que estava bem ali ao seu lado. E sentiu neste momento uma felicidade enorme que tomou conta dele de tal forma que beijá-la foi inevitável. Ele também a amava, do jeito dele, mas amava. E não foi preciso uma palavra para ela saber disso.